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30/07/2018 00:00:00 O câncer é uma doença psicossomática?

Autoras: Daniela Helena Müller¹

Fernanda Aver Pupe²

 

Para responder a pergunta acima vamos primeiro compreender melhor o que significam os termos câncer e doença psicossomática. O termo câncer tem sua origem no grego Karkinos, que significa caranguejo e faz uma referência à proliferação de células cancerígenas no organismo que se espalham pelo corpo lembrando as patas e pinças de um caranguejo, também é chamado de ‘neoplasia’ e ‘tumor maligno’; é a denominação de um grupo de mais de cem doenças que tem como característica central o crescimento desordenado das células do nosso corpo.

É uma doença que atinge órgãos saudáveis do organismo, explicando metaforicamente, o câncer não respeita as mais básicas regras de “convivência social” entre as células e cresce, ocupando o espaço de seus “vizinhos”, os tecidos e órgãos saudáveis. Ele se dissemina através da corrente sanguínea e dos vasos linfáticos (que fazem parte do sistema imunológico, pois transportam células saudáveis que lutam contra infecções), produzindo as chamadas metástases, que são uma espécie de “filial” do tumor primário em outro órgão ou tecido.

As causas do câncer são múltiplas e podem ser originadas pela inter-relação de fatores externos e internos ao organismo. No que dizem respeito aos fatores externos, estes se relacionam com o meio ambiente e estilo de vida da pessoa portadora do câncer. Já os fatores internos, estão ligados à capacidade do organismo de se proteger das “agressões externas” e a determinação genética (INCA, 2014).

Além destes fatores, os estados emocionais podem interferir no sistema imunológico da pessoa levando ao desenvolvimento de alterações mente/ corpo, aspecto de interação importante e indissociável, que vem sendo estudada fortemente pela Psiconeuroimunologia (campo da ciência que estuda a interação entre o sistema nervoso central, SNC, e o sistema imunológico). O câncer é uma doença que acompanha a história do homem, mesmo com o avanço da ciência no tratamento, o câncer ainda carrega alguns estigmas. Precisamos entender que a medicina progrediu muito e hoje existem diferentes tipos de tratamentos e medicamentos que amenizam os sintomas e melhoram a qualidade de vida do paciente. O câncer também pode ser evitado através de um cuidado adequado da saúde, com a ida ao médico e realização de exames regulares. Inclusive, existe um alto índice de cura do câncer quando diagnosticado no início, o que demonstra a importância dos exames preventivos.     

Vamos atentar ao termo doença psicossomática: psicossomática se refere a uma abordagem holística da saúde que busca a essência do homem através da sua unicidade e totalidade. Esta abordagem parte do princípio que o ser humano é uno, não existindo a divisão mente-corpo e preconizando que para compreender o processo saúde-doença é necessário entender o indivíduo em sua totalidade. Desta forma se faz necessário, compreender que o adoecimento humano e o que advém dele, não é meramente físico, e que nesse sentido, mente e corpo não podem ser dissociados. Segundo Mello Filho, toda doença humana é psicossomática, já que mente e corpo são indissociáveis anatômica e funcionalmente, estando assim, ambos envolvidos em qualquer manifestação de doença ou de saúde. Dentro desse conceito, e, respondendo ao questionamento do título: sim, o câncer pode sim ser considerado uma doença psicossomática.

Assim, a psicossomática é uma área do conhecimento que faz a interface entre diversas especialidades humanas e da saúde, que buscam a compreensão e atenção do paciente em sua integralidade. É uma abordagem que engloba a totalidade dos processos e relações entre os sistemas somático, psíquico, social e cultural. Essencialmente, ajuda a desenvolver uma atitude humanizada e ética no entendimento do processo saúde-doença (MELLO, 2002).                    

      Quais são as contribuições da psicossomática no atendimento do paciente oncológico?

De acordo com o psicólogo Angerami-Camon (1998), o enfoque apropriado ao paciente oncológico, seja qual for o seu estadiamento, termo usado pelos oncologistas para definir a extensão da doença a partir de exames, deve partir dos pontos de vista global e interdisciplinar, pois não é possível avaliar um diagnóstico de câncer apenas como um processo fisiológico, sem pensarmos no paciente como um ser humano, com seu ambiente, com os seus desafios decorrentes do adoecimento, com as suas relações intra e interpessoais e com o intrincado ambiente médico e humano em que será efetivado o tratamento.

Para isso, se faz necessário assistir o sujeito de forma global onde as especialidades devam se complementar. Também é imprescindível entender e tratar o câncer como um fenômeno biológico, psicológico, social, cultural e espiritual. Assim, considerando o câncer uma doença com características psicossomáticas, para tratá-lo, uma abordagem integral de cuidado, biopsicossocial e espiritual, denota ser mais capaz de atender a demanda de seres humanos que buscam um atendimento humanizado.

Atualmente, essa patologia é considerada como tendo vários fatores na sua origem. Considerando isso, esses cuidados integrais e interdisciplinares deveriam permear qualquer tratamento oncológico. Mas, a realidade nem sempre nos mostra isto, grande parte da população é atendida a partir do modelo biomédico, onde apenas o corpo físico é considerado. Segundo Carvalho (1998), esta visão cartesiana ainda resiste nos dias atuais, mas com inúmeras pesquisas científicas que buscam as inter-relações entre os aspectos biológicos, psicológicos, sociais e o adoecer, as mesmas estão modificando o pensamento e as linhas de ação. Para a abordagem psicossomática faz-se necessário atender as reais necessidades do paciente e entendê-lo em todas as suas particularidades.

      Como a psicossomática percebe o paciente oncológico?

Existem características observadas em um grande número de pacientes oncológicos, que do ponto de vista psicológico, visualiza-se uma dificuldade em identificar e expressar suas próprias emoções. Seriam pessoas mais passivas e obedientes, do tipo que não reclamam de nada e que sentem dificuldade em lidar com sentimentos considerados hostis e/ou que desagradam aos outros.

Pessoas que podem confundir suas próprias emoções e, ao invés de perceberem uma angústia profunda, por exemplo, sentem dor no corpo. Outras não reconhecem seus próprios sentimentos e reprimem a própria raiva, ou, se entregam a uma amargura pela não realização dos seus próprios sonhos, focando seus pensamentos no que não deu certo, e não nos possíveis projetos e sonhos futuros. Também é observado, que pacientes oncológicos que vivenciaram uma perda (por morte ou separação), no período que antecede o adoecimento, ou seja, a não vivência do luto e/ou a própria dificuldade de externar suas tristezas também são fatores que podem predispor ao câncer do ponto de vista psicossomático.

Nos dias atuais, não podemos deixar de citar o estresse como desencadeante de inúmeras doenças, inclusive o câncer, já que, o estresse afeta diretamente o nosso sistema imunológico. Mas, é muito importante a compreensão de que cada indivíduo é único e que vai responder de diferentes maneiras às dificuldades da vida, lembrando que não existe uma única característica que predispõe ao desenvolvimento do câncer, são múltiplos fatores, internos e externos ao organismo.

        Que fatores colaboram no enfrentamento da doença e possível reabilitação?

Segundo o médico Le Shan a experiência de se vivenciar o câncer pode constituir-se como o “ponto de mutação” na vida da pessoa. Estes são orientados a buscar o autoconhecimento, avaliar as suas posturas frente a determinadas situações que a vida lhes apresenta e a resgatar alguns valores e princípios. E conforme o psiquiatra Viktor Frankl, em situações potencialmente adversas, uma pessoa pode erguer-se, crescer para além de si, mudar a si mesma, ou seja, também pode encontrar sentido no sofrimento. Para este autor, é possível extrair do sofrimento um significado e revertê-lo para estratégias de enfrentamento.

        Quais as características do acompanhamento psicológico dentro do enfoque psicossomático?

Durante o processo de enfrentamento da doença, observa-se que as representações negativas podem influenciar no tratamento contribuindo para maior resistência e não facilitando o alcance dos objetivos de superação. Existem muitos sentimentos ligados ao adoecimento e por isso a importância do atendimento psicológico aos pacientes de câncer bem como seus familiares que muitas vezes estão mais fragilizados emocionalmente que o próprio paciente.

No que diz respeito a este acompanhamento psicológico, busca-se: facilitar o processo de enfrentamento da doença buscando minimizar o sofrimento emocional inerente a todo processo; ajudar o paciente a reorganizar-se psicologicamente e encontrar um sentido para seu sofrimento (ressignificar); estimular à expressão dos sentimentos, incentivá-lo a se colocar ativamente no processo de cura, auxiliar os pacientes e seus familiares a encontrarem mecanismos de ajuste mais eficientes, e por fim, ajudar o paciente a continuar a fazer projetos, obter prazer e alegria na vida, amar e se sentir amado.

        Quais seriam então os diferenciais do enfoque psicossomático em comparação a um modelo mais tradicional?         

Ainda percebemos que em alguns espaços de atenção à saúde do paciente com câncer, a preocupação está em acolher a doença e tratar os sintomas desta, em detrimento ao acolhimento da pessoa doente. Um novo “olhar” se faz necessário, pois o modelo tradicional fragmenta e mecaniza o trabalho assistencial. Este modelo denota não ser mais capaz de atender a demanda de seres humanos que buscam um atendimento humanizado, onde a história de vida do paciente seja respeitada, os seus sentimentos, os seus valores, crenças e o sentido que dá para sua vida. Quem atua dentro de um referencial mais fechado, pode até ser hábil em “ler sintomas” e diagnosticar doenças, mas peca quando não escuta do paciente o que ele realmente necessita para a sua vida. E muitas vezes esta necessidade é o que o fez adoecer, pois está comunicando algo que precisa ser lido, decifrado e entendido.

Por fim, o papel dos profissionais da área da saúde, através de intervenções adequadas, é poder ajudar os pacientes a elaborarem e enfrentarem com dignidade e qualidade de vida o processo que estão vivenciando. E se possível, auxiliar a alcançarem sentidos novos, nas suas vidas.

 

Referências:

ANGERAMI-CAMON, V.A. Urgências Psicológicas. São Paulo, 1998;

CARVALHO, M. M. Introdução à Psico-oncologia. São Paulo: Psy II, 2000;

___________Resgatando o viver. SP: Summus Editorial, 1998;

FRANKL, V. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Petrópolis: Vozes, INCA- Instituto Nacional do Câncer, 2014. Disponível em<http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/inca/portal/home>. Acesso em: jul. 2018;

LESHAN, L. O câncer como ponto de mutação. São Paulo: Summus, 1992;

MELLO FILHO, J. Concepção Psicossomática. Porto Alegre: Casa do Psicólogo, 2002.

 

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¹ Psicóloga Clínica, Especialista em Psico-Oncologia , Especialista em Psicologia Hospitalar.

² Psicóloga Clínica, Especialista em Psicossomática, Psicóloga coordenadora do setor de psicologia da Aapecan.